quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O Capital

"Tenha certeza que a fortuna que você procura, é a fortuna que você precisa." - Ben Harper.

Mathieu nasceu em Jurandira, cidade do interior do recôncavo baiano. Como toda cidade do interior que se preze Jurandira oferecia boas amizades, conhecidos que estão sempre por dentro da vida de todos e velhos sábios que ainda tem saudade de quando a avenida principal ainda não era asfaltada.
O rapaz cresceu preocupado com os problemas sociais, com o desmatamento da Amazônia, interessando-se nas letras do Cartola e na melodia do Pink Floyd. Quando jovem gostava ainda de ao menos três vezes por semena dedicar-se aos treinos de natação – era sempre muito elogiado por seu treinador. No mais, Mathieu sonhava em ser professor de física, ter uma vida simples e acima de tudo em ser feliz.
A adolescência passou. Mathieu não plantou uma árvore sequer, não fez mais do que oferecer alguns trocados para alguns mendigos vez ou outra. Além disso, não fez muito com as inspirações providas pelas músicas além de alguns rabiscos musicados com três acordes e achou que os treinos de natação ocupavam muito o seu tempo e por isso os abandonou.
Aos dezenove anos, enquanto freqüentava o cursinho, conheceu uma mulher maravilhosa e inteligente e como de costume local tinha vontade de levá-la nas redondezas de Jurandi, provida de belas cachoeiras. A falta de um meio de transporte mais eficaz que sua bicicleta preta com detalhes amarelos, no entanto, o impediu disso.
Foi pensando nos meios de transporte, em uma vida mais confortável do que a dele para os filhos, em presentes mais elaborados para a linda namorada que afinal de contas merecia, Mathieu foi dominado por um súbito impulso e marcou medicina ao invés de física em sua inscrição para o vestibular.
Com muita dificuldade o rapaz se formou, trabalhou, casou-se com a namorada do cursinho, teve três belos e saudáveis filhos. Ele teve um dom raro e belo de tentar fazer todos em sua volta ser feliz, especialmente sua família.
Mathieu acabou morrendo aos sessenta de infarto, doença essa que poderia ser facilmente denominada também, em seu caso, “trabalho excessivo”. Foi rico, provedor de bens, especialmente para seus filhos. Teve reconhecimento social, uma esposa maravilhosa, filhos bem estruturados. De um modo geral, foi feliz durante vários momentos, infeliz na maior parte.
Foi dentro desse contexto que dois amigos mais próximos, para quem Mathieu vez ou outra confidenciava algo, cochichavam de canto no funeral do querido amigo. O primeiro disse:
- Se ele tivesse sido professor certamente viveria com menos recursos, por mais vinte anos ao menos e mais feliz.
O outro engoliu em seco, nem sequer balbuciou nada, fez que sim com a cabeça e fazendo uma espécie de auto-análise se indagou:
- “Quantos Mathieu não existem?”

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

United Kingdom of Itabira

Maria nasceu em Itabira, Minas Gerais. Aos quatorze já havia vivido em algumas outras cidades do interior mineiro e enfim por motivos, digamos, “trabalhísticos" paternos mudou-se para Ipanema, Rio de Janeiro.

Não se sabe ao certo se há uma teoria que afirma categoricamente que os lugares em que se vive influem na personalidade e muito menos se ela de fato existe o quanto ela é válida. Tem-se consciência, no entanto, que Maria figurava-se bem dotando da discrição – típica qualidade mineira – combinando-a com a descontração despretensiosa carioca.
As junções “uai/pô” não paravam por aí. Seu corpo era carioca, seus traços eram mineiros. Falando de forma estereotípica tal encontro seria fatal para o coração de qualquer rapaz dotado de um mínimo bem ínfimo de consciência, para Mathieu não seria então obviamente diferente.
O jovem rapaz já havia se apaixonado algumas vezes, é a bem da verdade, mas logo de cara, quando a avistou pela primeira vez, percebeu que ali em Maria havia o melhor de cada estado, de cada cidade, de cada município, de cada rua e de cada esquina que o Brasil ou qualquer outro país pudesse oferecer.
Os dois se entreolharam simpaticamente e desde o primeiro contato se amaram misteriosa e intensamente. A simpatia, mistério e intensidade iam aumentando progressivamente em Mathieu a cada gesto, cada palavra balbuciada, cada comentário que era sempre tão inteligentemente bem colocado por Maria.
Como uma espécie de onda eletromagnética essa gama de emoções de Mathieu se acumulava, se somava e era emanada para a alma de Maria que a recebia “cariocamente” bem e mineiramente tentava escondê-la.
Mas não havia como. A cada milésimo de segundo um admirava mais o outro e se combinavam e se queriam loucamente mais. Na química do corpo dos dois os opostos se distanciavam e coração semelhante dissolvia coração semelhante.
Eles se beijaram se amaram e Mathieu se sentiu completo como nunca antes havia experimentado. No estômago de Maria as borboletas atingiam um nível de RPM nunca antes estudado. As músicas faziam mais sentido, o corcovado era mais lindo e as pedras da rua direita de Ouro Preto reluziam mais magnificamente.
Fora, enfim, construído o trem bala de emoções que ligavam Itabira de Mathieu a Ipanema de Maria.
A grande questão, como tudo de trágico que o amor excessivo traz, era que o trem bala ligava os pensamentos e o amor, mas não os corpos. Maria teve obviamente que voltar para o Rio após a rápida visita a natal Itabira e os saudosos cumprimentos no coração de Mathieu.
Nesse dia, à caminho da rodoviária, no Rio fazia frio e chovia enquanto que em Itabira nevava. Antes de se despedirem calorosamente Mathieu abraçou Maria efusivamente e enquanto acariciava seus cabelos ainda molhados ele prometeu uma visita ao Rio, enquanto Maria jurou um nascer do sol no Arpoador.
Quinze anos depois Mathieu tomava um aperitivo em uma bodega itabiritense e ao som Chico Buarque afirmava que “Ela é carioca”. Mathieu se permitiu a ousadia de corrigir o mestre e pensou: “Não, ela virou carioca”e mineiramente se lamentou, não deixando claro para as pessoas ao seu redor.
Claro naquele momento era apenas como era estranho que o nascer do sol no Arpoador fosse aquilo que sempre lhe proporcionava a maior emoção de todas e pela milésima vez observou o sol refletir no mar, com as pedras e a vegetação ao redor. Tomou mais um aperitivo. Se emocionou: “como é belo o Arpoador! Como eu gostaria de conhecer o Rio.”

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Shady Lane

“A inspiração por via de regra sempre se vai, como acaba a felicidade sufocante do primeiro beijo. Elas vão se embora sorrateiramente, como pôr-do-sol de sábado magnificamente ensolarado.” – disse-me um dia Mathieu. Ser sorrateira, na opinião do mesmo é, inclusive, o que torna tudo mais desconfortável.
“Analisar o viver é como observar um típico fim de semana em que se viaja, começando portanto com o entusiasmo e terminando com a despedida.” – continuou Mathieu. “Viver e sofrer definitivamente não combina apenas na sonoridade. Tal fato, não é mera coincidência.”
Foi pensando nisso que Mathieu se lembrou do caso de seu amigo Shady e sua namorada Lane. Quem de certa distância analisasse facilmente concluiria o que eles mesmos pensavam: foram feitos um para o outro. Acontece, no entanto, que por uma dessas causas misteriosas, tão tipicamente humanas, eles nunca passaram de algumas simples carícias sem maiores demonstrações afetivas apesar do carinho gigante e fulminante que um sentia pelo outro.
Assim como a inspiração de Mathieu, a do casal também se esvaiu. Shady e Lane se mudaram para cidades diferentes e distantes, constituíram famílias com marido e esposa que tanto Shady quanto Lane realmente gostavam e naturalmente admiravam.
Acontece, no entanto, que por uma dessas causas misteriosas, tão tipicamente humanas, o velho casal se encontrou no banheiro de um desses restaurantes interioranos na cidade natal que já havia presenciado outrora o amor promissor dos dois. Poucas palavras eles trocaram, mas se abraçaram como a esposa afaga o marido combatente que se destina a uma grande guerra. O “bolo” na garganta que ambos tinham e que não o deixavam balbuciar nada além de algumas interjeições de fato queria dizer muita coisa.
Na volta para as respectivas mesas onde os conjugues e os filhos os esperavam ambos permaneceram pensativos. Nessa noite, Shady se entediou com a televisão até as seis da manha e Lane leu pelo menos umas cento e cinqüenta páginas de seu Baudelaire. Ambos tinham certeza de que quem realmente venerava estava em outros lençóis e sobre quem amavam já não tinham a mínima linha de pensamento.
Foi assim que a inspiração e felicidade se foram. Sorrateiramente, como tinha de ser; dolorosamente, como o viver manda. Shady e Lane, como de costume, concluíram o mesmo diante do fato: “A dúvida esmagadora acaba por gerar inevitavelmente a frustração que sem sombra de dúvidas se constitui um dos sentimentos mais devastadores porque consegue acabar com tudo o que foi de certa forma construído até então, independentemente de quão sólida estava à construção.”.
Shady, em um desabafo com Mathieu, em uma dessas mesas de botecos comentou: “Frustração, viver e sofrer não tem a mesma sonoridade, mas isso é definitivamente uma mera coincidência.” Enquanto Shady tomava amargamente a sua última dose na companhia solitária de Mathieu fazendo as suas últimas lamentações, do outro lado do país, Lane ouviu uma canção que a fez lembrar do seu antigo amado. A canção era ritmada, tinha refrão agradável e poder se dizer até superficialmente empolgante, mas ao fim deixava invariavelmente uma sensação de vazio. “É duro ser escolhido como um extra na adaptação do filme da seqüência de sua vida” – pensou Lane inspirada pela canção e imaginando que Shady também pensaria o mesmo. Os mundos dos dois colidiram e tudo o que eles queriam era uma alameda sombreada.