quarta-feira, 25 de junho de 2008

Morte súbita

"Tenho que me forçar a acordar mais tarde" - pensa subitamente Esmerildo. Na falta de preenchimento diário qualquer alternativa, mesmo que extremamente alternativa, é válida. O velho relógio, pesado e grande como a sua consciência, aponta as doze horas de mais um dia custoso. O sol invade meio que preguiçoso a brecha despretensiosa da janela - Esmerildo estremece. Viver foi já foi árduo, hoje é impraticável.


Desce as escadas modestamente. Afinal nessa idade (ou em qualquer outra? - pensa) não há muito o que se esperar. O velho pão de cada dia que da-lhe hoje o espera. "Tenho que acordar mais cedo" - reflete Esmerildo ao notar que Dona Madalena já cozinha o feijão. Lembra-se da sua vida vaga e logo o pensamento é esvaziado com uma mordida no pão já duro e uma golada no café passado.


"Bom dia vovô!" - mais um dia comum se arrasta. Como sempre o café, o pão e o seu neto dão o pontapé inicial para lembra-lhe de que tudo se inicia outra vez. Depois são os remédios. Esses indispensáveis ! - é o que diz o doutor. Não, não se trata da pressão. Não desse tipo de pressão, sanguínea, física...

Enquanto ouve desatenciosamente o neto, como sempre, Esmerildo projeta dificilmente seu dia. Não por haver atividades demais, mas por não se ter a necessidade de uma agenda. Ele continua tendo convicção que mais agradável seria um formoso dia com três horas de sol e oito horas de lua, nada mais. Nada menos, talvez. Pensa no seu Dostoiévski a ler pela vigésima vez e no cuidar do seu jardim pela octagésima vez. Não se tratam mais de estratégias para preencher o dia, mas a vida.


Se era de tédio que Esmerildo se queixava, resolveu então fazer algo inovador. Nesse momento passear pelo parque lhe pareceu uma aventura digna do cinema norte-americano. Lembrou-se dos seus ídolos e heróis do passado.Concluiu de mau humor que eles se vão a medida que a idade se vem. Munido do seu terno de casimira inglesa já gasto como ele próprio, da sua boina fiel escudeira e da Gazeta do Brasil entre os braços, lá foi Esmerildo contrariar seus princípios e fazer algo não previsto. Fugir do "script" dava-lhe nos nervos. E esses, a essa altura, já estavam fatigados.


Em meio a arbustos grandiosos e margaridas vistosas, Esmerildo constatou com um frio na espinha que após anos tinha finalmente reencontrado a mais admirável delas. Joana apareceu-lhe como um cair de noite. Súbito e assustador. Esmerildo encolheu-se, fez que não viu, ajeitou a boina, abriu a Gazeta. A esse ponto já era irremediável. Joana foi ter com ele.


- Veja so ! Que ventos o trazem?


- Joana! A quanto, não? Pois é, minha caminhada diária.


- Dizem que de casa não sai mais - disse a bela senhora como quem nada quer.


Nesse momento Esmerildo pensou, meio que por força do hábito, em dizer que a culpa era da tuberculose - aquela desgraçada! . Uma cólera, no entanto, o invadiu por inteiro. Pela primeira vez na vida e isso já era, note-se bem, nos idos do seu septuagenário, aquele velho moço da boina resolveu se abrir.


- Acontece que quando tive notícias do teu envolvimento com Antônio a casa me pareceu o único lugar. Sempre lhe amei, tu bem sabes. Dizias que não fazia por onde, tinha por vezes em outras saias é a bem da verdade. Mas, veja bem, precisamos errar para acertar. Era moço, a gravata me caia ainda bem. Mas acordei. Sabe Joana - surpreendia-se com sua própria atitude - que achas de deixar tudo de lado, Antônio, os netos, o parque e ir comigo mundo afora?

Joana suspirou profundamente. Um suspiro longo como fora a espera por esse momento, ainda quando usava babado e saia rodada. Refletiu. Mexeu-se preguiçosamente. Por fim, em tom convincente disse-lhe:


- Sabe o quanto te quis, bom homem. O que vives agora vivi e ainda vivo de certa forma. Mas, sabe como é: se não temos do de morango, o que nos resta é o de flocos. Veja, fazes - me uma proposta indecorosa mas corajosa, não é mesmo?


- Sem dúvida ! - disse Esmerildo, esforçando-se para não demonstrar a angústia que lhe tomava. - Sairemos mundo afora, mundo afora! Pense bem.


- Dizes que acordara, não é mesmo? - Pergunta de uma forma adocicada e infantil Joana.


- Claro, claro! - Afirma categoricamente Esmerildo, enquanto se ajeita dentro da casimira.

- Pois bem... Já pensaste em se levantar mais cedo? .